Um mundo de escolhas – A Mulher

"Aquilo que não é necessariamente uma escolha
não pode ser considerado como mérito
ou como fracasso"
Milan Kundera

Depois de quase um mês, vivendo naquele mundo de escolhas, de ver o quanto as pessoas viviam felizes por poderem fazer suas escolhas e terem tais escolhas respeitadas, decide voltar para este nosso mundo imperfeito, mas decidi que a partir dali teria que fazer tudo diferente, precisava colocar em prática tudo aquilo que aprendi no outro mundo, precisava aprender a fazer escolhas, e principalmente aprender a respeitar as escolhas dos outros.
Naquela manhã escolhi não ir trabalhar, diante de tudo o que eu vi, eu precisava ao menos tentar mudar este nosso mundo. Fiquei vagando pela cidade durante toda a manhã, era visível a diferença existente entre meu mundo e aquele mundo, aqui as pessoas em sua maioria não são felizes como deveria, eu tentava compreender o que cada um pensava, tentando ainda colocar em prática o ensinamento de não contestar as escolhas dos outros, mas aqui é quase impossível, pois na maioria das vezes as pessoas escolhem deixar os outros infelizes, quando não a si mesmo.
Minha primeira parada foi nas escadarias de uma grande igreja, lá estava imponente a casa de deus, mas a visão que tinha me fazia construir na mente um deus perverso, nas escadarias da igreja haviam algumas pessoas, a maioria deles pareciam ter passado toda noite naquelas escadarias, então pensei, porque será que estas pessoas escolheram ser assim? E mais, porque será que a igreja escolheu não os acolher? Eu estava faminto por respostas, afinal tinha decidido mudar o mundo em que vivemos, questionador, fui até uma das pessoas que ali estavam, uma senhora que aparentava uns 40 anos de idade, ainda com medo, me aproximei e perguntei:

- Porque a senhora escolhe ficar do lado de fora da igreja, se lá é a moradia de deus? Lá dentro seria bem mais confortável que aqui fora.

- É que chega uma hora que não temos escolhas, o dono desta casa aparentemente saiu de férias, e as pessoas que cuidam da casa não querem ninguém por perto.

-Mas você porque você acha que deus não está em casa?

- Quando me falaram dele me pareceu uma pessoa boa, que acolhia a todos, me falaram de tantas obras dele, que me encantei por ele, mas quando cheguei aqui e contei minha história, disseram que eu era uma pecadora e que se quisesse salvação teria que servir ao senhor daquela casa.

-E porque você não escolheu servir?

-No começo eu tentei, mas sem dinheiro não é possível, as pessoas vão te rejeitando pouco a pouco, principalmente quando lhe conhecem verdadeiramente.

- Eu posso lhe conhecer verdadeiramente?

- Não acho que queira ouvir minha história, só fiz escolhas erradas na minha vida, e isto me fez ser o que hoje sou.

-Eu escolho te ouvir!

E então ela me contou sua história, aos 16 anos havia se apaixonado por um rapaz, ainda estavam no ápice da paixão quando se descobriu grávida, o rapaz exigiu que ela tirasse o filho, ela escolheu levar as últimas consequências, não quis tirar o filho. Seu pai obrigou então que o rapaz se casasse com ela, tiveram o filho e ensaiaram uma vida feliz, mais durou pouco, logo ele quis de volta a liberdade que o filho havia lhe tirado, e noite após saia com uma mulher diferente, e não escondia isso de ninguém, muitas vezes voltava tarde para casa, quando não embriagado, a espancava.
Certo dia no trabalho ela conheceu uma pessoa, novamente se apaixonou, começou a sentir que poderia enfim ser feliz de verdade, os quase 4 anos presos a um amor falido havia lhe feito esquecer o que é ser feliz, escolheu então recomeçar, juntou suas coisas, seu filho, deixou tudo para traz e partiu para uma vida nova. Não demorou muito descobrir que o homem da sua vida era casado, e obrigado pela esposa, ele a abandonou.
Agora a vida lhe exigia decisões, sem trabalho, sem casa, sem nada, não poderia fazer com que seu filho pagasse por seus erros, foi então que escolheu abandonar o filho, deixou na porta de uma casa onde poderia ser acolhido, e seguiu sua vida, vendeu a única coisa que ainda lhe restava, seu corpo.
Depois de vinte anos numa vida desregrada, se prostituindo, vivendo o que para ela era a única opção que a vida lhe dera, ela se descobriu soropositivo, a vida agora lhe tirava seu único instrumento de trabalho, ela tinha que escolher entre abandonar sua vida atual para um novo recomeço, ou seguir em frente e terminar com a vida de muitos outros.
Escolheu recomeçar, era hora de dedicar sua vida a morte, já que estava condenada, lhe restava pedir que deus lhe acolhesse na nova vida que estava por vir, era hora de tentar reservar um lugar no céu. Escolheu viver para deus, mas não fora acolhida, na sua nova decisão.
Ao terminar de contar sua história, ela ainda explicou porque agora vivia nas escadarias da igreja:
- Me falaram que deus é bom, e que ele me compreenderia, me perdoaria, e me acolheria em sua casa, eu na verdade nunca o encontrei, e como não fui bem acolhida lá dentro, escolhi esperá-lo aqui fora, mas ele deve ser muito ocupado, pois já estou a muito tempo aqui, e nunca o vi entrar.
Deixei ela lá, embora tinha prometido a mim mesmo não contestar as escolha dos outros, era difícil, na minha concepção, aquela mulher só havia feito escolhas erradas durante toda sua vida, tudo poderia ter sido diferente se pelo menos uma das escolhas tivesse sido diferente. Era apenas o começo da minha jornada, mas já ali começara a perceber que seria impossível que nosso mundo ao menos se assemelhasse com aquele mundo de escolhas que eu havia conhecido, era perceptível que em nosso mundo, uma escolha, seja ela certa ou errada, seja minha ou do próximo, afeta todas as outras escolhas que venham ser feitas.

Sentei num banco de praça e me coloquei a refletir, o que será que deu errado na vida daquela mulher? Seriam suas escolhas? Ou seriam as escolhas das pessoas que lhe compartilharam a vida? Será mesmo que ela merecia a condenação pela qual estava sofrendo? E deus, será que ele havia esquecido de voltar para casa, ou ele não queria atendê-la? Ou ainda, estaria deus lá o tempo todo e ela não era capaz de enxergá-lo por que suas escolhas a tornou cega?
Eu que voltara achando ter todas as respostas para concertar nosso mundo, começava a sucumbir diante das primeiras questões.

Este é um texto de ficção.

Você pode ler o início do texto em: Um mundo de escolha